Entrevista com o escritor João Bastos de Mattos

Entrevista com o escritor João Bastos de Mattos

João Bastos de Mattos é um escritor de mão cheia. Embora tenha passado décadas de sua vida atuando como engenheiro, a literatura sempre foi sua companheira e seu refúgio.

Agora, aos quase 70 anos, ele lança seu primeiro livro, a compilação de contos “Urdiduras” (Patuá, 2022), uma obra deliciosa e de profunda maturidade.

É sobre este lançamento, mas também sobre sua vida, que João Mattos fala nesta entrevista exclusiva ao Álbum de Memórias.

“Urdiduras” é seu primeiro livro de ficção, beirando os 70 anos. Nos conte um pouco sobre seu percurso de leitor e escritor até aqui, e como conciliou sua proximidade com a literatura a uma carreira de 33 anos como engenheiro.

Tenho que comentar inicialmente que venho de uma família que sempre cultivou a leitura. Meu pai era um homem muito culto e muito estudioso, pesquisador da obra do filósofo Farias Brito e tradutor meticuloso de Spinoza. E minha mãe, que havia sido sua aluna na faculdade de filosofia, sempre valorizou muito as questões culturais. Eles tiveram oito filhos (dos quais sou o sexto), e cada um à sua maneira gostava de ler, de forma que pude absorver muitas referências livrescas, através de um elenco de leituras bem variadas – nem sempre uma alta literatura, mas acredito que esse amálgama de influências ajuda a consolidar o interesse pelo mundo das letras. Depois, na faculdade, trabalhava nas horas vagas na biblioteca do Centro Acadêmico, o que me abriu as portas para autores mais modernos, muito lidos nos anos 1970, Garcia Marquez, Cortázar, Hermann Hesse, Henry Miller.

Quando cheguei ao Rio para trabalhar como analista na Petrobras, em 1975, engenheiro recém-formado, a primeira coisa que me encantou na cidade foi a quantidade de história que havia nos velhos edifícios do Centro. Casarões centenários, dezenas de velhas igrejas, prédios públicos imponentes. E, andando por antigas ruas, passei a descobrir sebos variados: São José, Elizart, Império, Kosmos, Livraria Brasileira, Le Bouquiniste, Berinjela, tantos outros. Foi no rico acervo dessas casas que consegui fazer a minha coleção com todas as obras de Machado de Assis editadas pela Casa Garnier entre 1890 e 1920. Também esses sebos me possibilitaram a leitura de autores variados da literatura brasileira e universal.

Mas a pergunta era também sobre meu percurso de escritor. Na verdade, a menos de um texto escrito em 2004, relembrando meus anos de faculdade, foi apenas em 2008, já aposentado, que comecei a escrever e a participar de concursos.

Seu livro é dividido em partes. Exceto pela última, “Minhas memórias dos outros”, não fica tão explícito para o leitor o critério (temático?) que definiu esta divisão. Como foi esse processo de edição e a seleção dos contos em si?

O livro reúne 21 contos escritos ao longo de quinze anos. Embora abordem temas e situações bem distintas, penso que há um fio condutor que permeia a todos, ligado à memória e às reminiscências. Optei, entretanto, em reuni-los em grupos de acordo com um critério um tanto subjetivo. O primeiro segmento, Que amor, que sonhos, que flores, agrupa contos ligados à infância e às marcas que o passado infantil arrasta para o resto da existência. Em As traças da paixão surgem relatos que têm seu cerne no amor e nos relacionamentos. Ainda além da Taprobana traz a questão da memória e do passado de uma forma mais radical. O segmento Allegro ma non troppo apresenta histórias mais leves, com toques de humor. Em Minhas memórias dos outros aparecem autores e personagens da literatura universal, como falarei mais à frente.

urdiduras, de joão bastos de mattos 2

Sua escrita transita por diferentes vozes e formas narrativas, a depender do universo e dos personagens retratados. Quem você apontaria como suas principais influências literárias?

Não identifico alguém que tenha influenciado diretamente minha escrita. Circulei muito no meio dos livros, como falei, e, particularmente citando escritores lusófonos, muitos me impressionaram. Para ficar entre os mais clássicos, poderia citar Machado de Assis, Eça de Queirós, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa. Alguns autores me surpreenderam pelo inusitado de sua escrita: falando de estrangeiros, os textos de Juan Rulfo, Faulkner e James Joyce me causaram impacto.

Na sessão “Minhas memórias dos outros” em alguns momentos ensaiei um pastiche. Inspirei-me na escrita de Joyce em Traições dublinenses, talvez um pouco no linguajar de Lobato em Memórias de Lúcia, tentei emular o universo de Guimarães Rosa em O grito do pinhé – ainda que um amigo, especialista em literatura brasileira, tenha identificado nele um estilo mais próximo ao escritor Afonso Arinos (o tio, não o sobrinho).

Em resumo, minhas influências são um amálgama de muitos autores, sem destaque para algum em especial.

“Urdiduras” tem uma atmosfera que nos remete, em geral, ao campo ou cidades do interior. Há uma singularidade em algumas histórias, nos nomes dos personagens, que os conectam nesse mesmo local por vezes desconhecido para o habitante da metrópole. O que o atrai nessa atmosfera? Como você enxerga essa oposição de campo e metrópole na sua escrita?

Nasci no interior, mas gosto muito da vida cultural na metrópole. Identifico, entretanto, particularmente nos jovens das capitais, o que poderia ser chamado de “provincianismo metropolitano”. Muitas pessoas não conseguem distinguir a Paraíba do Rio Grande do Norte, nem têm notícias do que se passa no Brasil além das fronteiras da grande urbe. Com isso, vão desaparecendo no país valores preciosos que, sem saudosismo romantizado, precisam ser recuperados.

Desde que se aposentou, há 14 anos, você tem frequentado coletivos literários como a Confraria Carioca de Letras, a Oficina do Jardim Botânico e o Clube de Leitura – RJ, aos quais presta homenagem ao final de “Urdiduras”. De que forma estes encontros influenciaram sua produção literária até aqui?

Tais coletivos foram fundamentais. Noto que, para mim, a existência de um prazo, e algumas vezes a exigência de se ater a um mote proposto no grupo, esses fatores dão uma disciplina importante para um trabalho de escrita. Mais ainda, a discussão e a crítica do trabalho apresentado são um estímulo ao aperfeiçoamento dos textos. Percebia isso no grupo que homenageei no livro como a Oficina do Jardim Botânico, nos quais as conversas pós-leitura eram extremamente enriquecedoras. Ultimamente frequento o Clube da Leitura – RJ, um grupo que se reúne há quinze anos, uma façanha para grupos desse tipo.

Também participo do Clube do Livro, um coletivo de pessoas de formações variadas, iniciado em 2009 por Isabel Travancas. Nesse grupo se pode ter acesso a diferentes enfoques na interpretação da mesma obra, o que traz novos ingredientes e novas camadas à nossa apreciação.

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