Todo apreciador de ficção histórica deve ler Alberto Mussa. Como ele próprio relata nessa entrevista, generosamente concedida ao Álbum de Memórias, parte de sua literatura é fruto de muita pesquisa, de uma imersão em livros de história e documentos diversos. Seus livros trazem uma construção narrativa envolvente, instigante em sua tessitura mística, na busca por reconstruir (ou desconstruir) um passado misterioso através da ficção. Aqui o autor fala também sobre sua mais recente obra, “A origem da espécie – O roubo do fogo e a noção de humanidade” (Record, 2021).
Vamos ao papo!
1 – Seu livro “A primeira história do mundo” narra o episódio real do primeiro registro oficial de um assassinato no Rio de Janeiro, em 1567. A obra é um misto de pesquisa histórica com trama policial, embora você faça questão de frisar, sempre que a pesquisa não consegue alcançar o fato, o que é “especulação” ou hipótese da sua parte. Como foi equilibrar essas duas perspectivas, sobretudo ao narrar uma história do século 16?
A rigor, A primeira história do mundo não narra um episódio real. Porque não sabemos praticamente nada do que houve, de fato. Sabemos que houve um crime, quem foi a vítima, que a mulher da vítima teria sido a causa, que dez cidadãos (em 300, 350 habitantes) foram considerados suspeitos, e que o indivíduo condenado foi acusado duas vezes, de forma veemente, por um sobrinho da vítima. E mais nada. Não temos o processo, não sabemos sequer o nome dos suspeitos, exceto de 3 deles.
Toda a narrativa que escrevi é ficcional. Melhor: meu romance tem muito, mas muito mais ficção do que elementos documentais. E o que eu fiz, na verdade, foi dar uma solução completamente diversa da que foi dada na época. Recriei, no romance, com base nesse primeiro crime (que também é suposto) o mito das Amazonas. Só isso.
2 – Sobre a sua série “Compêndio Mítico do Rio de Janeiro” (no qual se insere “A primeira história do mundo”), quais foram os principais obstáculos enfrentados nas suas pesquisas para reconstruir aquelas histórias e os diferentes panoramas da cidade ao longo dos séculos?
Não diria que foram obstáculos. Felizmente, o Rio de Janeiro talvez seja a cidade mais bem estudada pela historiografia brasileira. E também tem a sorte de ter sido bem documentada, mesmo antes da fundação, e durante o século 16, quando não passava de um porto de escala na rota do Prata, muitas vezes frequentado por embarcações clandestinas.
O que fiz para escrever o “Compêndio” foi o que chamo de “imersão” na bibliografia carioca, um mergulho em livros de história propriamente ditos, em documentos diversos (como cartas de viajantes ou antigos mapas) e mesmo romances contemporâneos (caso especial dos séculos 19 e 20).
Minha preocupação foi sempre fixar um painel, uma paisagem social da cidade, como cenário onde a trama se desenvolvesse.
Em relação aos enredos em si, são todos mais ficção que realidade. E a ficção é livre.
3 – Você acaba de lançar “A origem da espécie – O roubo do fogo e a noção de humanidade”. Nele você parece mergulhar ainda mais em um tema que permeia a sua obra: a importância dos mitos na história humana. Conte um pouco sobre seu processo de produção desse livro, e o que o motivou a escrevê-lo.
Vou inverter as respostas. Primeiro, falo do motivo que me levou a escrever um livro sobre o mito do roubo do fogo. Acredito, por tudo que li até hoje, que o conjunto mitológico universal tem um fundo histórico comum. A narrativa, para mim, é a expressão mais antiga no âmbito da espécie humana, provavelmente anterior ao próprio Homo sapiens.
Tudo aquilo que a chamada “literatura” (ou seja, o texto escrito) conserva como patrimônio literário tem sua origem na pré-história. São os “homens das cavernas” que criaram, na verdade, a maioria das nossas narrativas. Ou dos temas fundamentais que nos atraem hoje.
Há uns 30 anos, mais ou menos, quando estudava a pré-história das línguas tupis, comecei a perceber que havia uma recorrência de histórias sobre a origem do fogo cujo enredo era um roubo. E não só na América do Sul, mas no mundo inteiro.
Esse tema passou a ser, para mim, uma obsessão intelectual. Comecei a colecionar mitos do roubo do fogo nas mitologias do mundo. E logo constatei que eles existem em todos os continentes, e em sociedades etnologicamente muito distintas entre si.
Mas A origem da espécie começou mesmo a ser escrita quando li um tratado de mitologia comparada denominado The origins of world mythologies, de autoria de Michel Witzel. Discordei de algumas interpretações dele; e particularmente do caráter secundário atribuído ao roubo do fogo, na construção do corpus mítico universal. Para mim, o roubo do fogo é uma das 3 ou 4 histórias mais antigas ainda narradas sobre a face da terra.
Escrevi, então, minhas impressões sobre esse mito. Primeiro, quis demonstrar que o roubo do fogo é no mínimo tão antigo quanto a própria origem da humanidade anatomicamente moderna, que foi contado pela mais antiga ancestral da humanidade viva.
Depois, usando métodos que esbocei no Meu destino é ser onça, reconstituí a trama original do roubo do fogo: identifiquei o tipo de fogo roubado, quem foi o ladrão, quem era o dono original, e qual o método de roubo.
Em seguida, fiz uma interpretação dessa trama; e concluí que o mito do roubo do fogo foi um grande programa ideológico cujo objetivo era consolidar a noção de humanidade, caracterizada por 4 elementos: o alimento cozido; a inteligência como superior à força; o incesto, que induz ao parentesco de afinidade; e o “xamanismo”, o conhecimento metafísico segundo o qual ser humano é não ser apenas humano.
O livro ainda especula sobre a origem da linguagem, que certamente (na minha opinião) é anterior ao próprio Homo sapiens.
4 – Quem são os autores brasileiros da sua geração com quem você enxerga alguma proximidade literária e por quê?
Sou leitor de literatura brasileira. Sou um apaixonado pela literatura brasileira. Mas não consigo me ver espiritualmente vinculado à produção brasileira contemporânea. Acho até que esse conceito é um tanto obsoleto.
Tenho dívidas imensas com Alencar, Machado, Lima Barreto, Marques Rebelo, Nelson Rodrigues, Antônio Callado, talvez outros. Mas minha ascendência literária verdadeira está muito mais na literatura hispano-americana, especialmente na Argentina.
Creio descender diretamente de autores como Adolfo Bioy Casares e Jorge Luís Borges. O escritor que considero mais próximo de mim, da minha geração, é o argentino Guillermo Martínez, um matemático que virou romancista.